Eu vivi muito pouco tempo.
14 anos 9 meses, 25 dias, 7 horas e 40 min, na verdade.
Eu já engoli muito sapo, já tropecei na rua, já fodi meu cabelo, já quase afoguei meu primo, já tive cachorro, já quebrei o dedo, já vomitei no chão da garagem, já pulei em cama de loja de departamento, já fui traída, já fiquei presa em banheiro de restaurante, já quebrei um espelho, já fui picada por uma abelha no pescoço, já xinguei operadora de telemarketing, já dormi no meio de pulp fiction, já respondi o boa noite do jornal nacional, já sangrei dentro de uma sapatilha, já chorei quando um menino de rua veio me pedir dinheiro.
Mas a vida é tão pequena, e tão grande ao mesmo tempo, que eu vivi muito pouco.
Ainda não fui pra Europa, ainda não mergulhei em Fernando de Noronha, ainda não tive hepatite de tanto desrespeitar a bula do meu remédio, ainda não rodei de ano, ainda não bati em nenhuma guria, ainda não tirei licença pra dirigir, ainda não decorei a fórmula de báskara, ainda não aprendi a gostar de salada, ainda não terminei um tubo de pasta de dente antes de comprar outro, ainda não aprendi a jogar need for speed.
E, principalmente, ainda não aprendi a me satisfazer: sabe aquela pessoa chata, que sempre quer mais, e quando consegue, fica infeliz?
Que tem uns 80 anos de vida pela frente e pensa que tudo vai acabar naquele virar de esquina? Ou naquele segundo de depressão profunda, que depois é substituído por uma quase primavera interior? Aquela pessoa lá, que as coisas parecem sempre abaixo do seu nível de exigência; ou muito demoradas, ou muito rápidas, ou muito bonitas, ou muito feias, ou muito difíceis, ou muito fáceis?
Que tem como passatempo – além de sudoku – reclamar, reclamar, reclamar e reclamar. E escrever sobre essas reclamações infelizes?
Soy yo.
Mas eu perdi tanta coisa, tanta coisa, que o que restou de mim é cada vez mais puro, essencial e verdadeiro. O que me leva a pensar, que essa alma rabugenta é minha. Tão minha que é eu. Não tem como mudar, nem como perder, nem como doar.
Talvez a receita da minha essência seja algo como: nostalgia crônica + antecipação + insatisfação. Talvez tenha algumas outras coisinhas que me façam assim tão Laura, mas sempre vai ter a insatisfação... Meus pais já me falaram isso, doutora Daniela também, e agora só o que faltava aconteceu: eu percebi.
Talvez aquele alarme de carro lá fora, ou o calor insuportável, o ritmo de férias, a saudades, o gosto amargo das lembranças, os textinhos do caio Fernando pinicando na minha cabeça – não sejam lá tão grandes como parecem ser. Tão importantes nesse momento como parecem ser. Essas coisas externas, que correm no mundo lá fora, frenéticamente e incansavelmente. Mas sempre fora, nunca fazendo parte de mim por inteiro.
Admitir uma fraqueza gigantesca como essa é amedrontador. Saber que ela é, acima de todas as coisas, seus pesadelos, superações, fantasmas, recaídas. Que ela é sua mais profunda característica – imutável, irremediável, inabandonável.
E no fim de tudo, quando as perdas se transformarem em grandes tsunamis, só seremos eu e minha insatisfação. Ela sempre agarrada em mim, sobrevivente e alheia à todos os meus tropeços e tentativas de separações. Nós duas: velhas, grisalhas, reclamonas, estúpidas, loucas. Eu e a minha insatisfação, que é tão minha que é eu.