sábado, 20 de setembro de 2008

pisca-pisca

– a vida, senhor visconde, é um pisca-pisca. a gente nasce, isto é, começa a piscar. quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. é um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. a vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. um rosário de piscadas. cada pisco é um dia. pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
– e depois que morre? - perguntou visconde.
– depois que morre vira hipótese. é ou não é?
(monteiro lobato - memórias de emília)

à minha estrela

(seu rogério aos vinte anos, de ray-ban e calça skinny)
meu pai é tão humano, tão nostálgico e tão carente que depila o peito com cera, joga carteado sob o sol de domingo e mexe no meu cabelo toda vez que precisa de um beijo (porque na verdade tem vergonha de simplesmente pedir um). ele pode não ser o melhor do mundo, porque às vezes reclama das notas, da alimentação junkie, do volume do ipod muito alto e essas coisas, e também porque pai perfeito não existe, é lenda. mito.
depois de um tempo aprendi a ver meu pai como uma pessoa que carrega um enorme buraco dentro de si mesmo. não sei porque, mas às vezes o vejo olhando para o nada com os olhos verde-acinzentado (que eu não herdei) e as mãos dentro dos bolsos. e ele parece encontrar o complemento pra esse vazio apenas no sorriso meu ou do meu irmão. é tão fácil fazê-lo feliz. chego em casa da escola e ele está no pufe da sala, tocando yesterday no violão com a palheta do aerosmith de madre pérola que eu dei e que custou uma porrada de dólares, querendo me impressionar. às vezes ele toca hey there delilah, só pra me ver vir correndo da outra sala até perto dele e cantar junto. mas ele não sabe que eu não gosto mais dessa música - e ela não representa mais nada pra mim, como uma vez representava - e eu finjo que é a minha preferida. é fácil fazer meu pai feliz, mas é muito difícil pensar na hipótese que talvez ele não seja feliz por completo. confesso que ja tive muito medo que isso fosse culpa minha; mas eu sou filha, vim dele, sou o sangue, o gene, tudo dele. e ele é tudo meu também. ele me dá tudo o que eu preciso, desde carona até um mimo de uns dígitos maiores do que deveriam ser. desde carinho até mijada, desde massa ao pesto que eu adoro e só ele sabe fazer até uma viagem para um lugar inimaginável no litoral carioca. vejo ele sério e penso que é o trabalho. prefiro pensar que é o trabalho. porque ele fez cinco anos de engenharia mecânica em são leopoldo morando num pensionato do exército e comendo arroz e farofa todo dia e hoje é responsável pelo emprego de milhares de pessoas. porque talvez ele não tenha tempo pra assimilar no que a sua vida se tornou porque o tempo é sempre preenchido com e-mails, telefonemas, papéis para assinar. talvez ele não seja feliz - ou não pareça feliz - porque hoje ele tem a vida que nunca imaginou ter; porque a juventude de delinquente juvenil do seminário que roubava carros e fumava maconha atrás da estátua da virgem de caravaggio não durou para sempre, como ele imaginou. porque rock in rio não é mais no rio, e o ac/dc não existe mais, nem o van halen e o ozzy virou artista da mtv. porque não se pode mais ser comunista nem ter pôster de fidel na parede do quarto quando se tira dinheiro da indústria mais capitalista do planeta. porque hoje ele não enxerga mais direito de perto, nem consegue mais correr na mesma velocidade, nem entende direito a tecnologia. porque ele precisa pedir ajuda pra algumas coisas no celular. porque ele sabe que vamos largar da mão dele se ele tentar pegá-la. porque às vezes ninguém entende porque ele chora, ou porque ele grita, ou porque ele não quer falar com ninguém. porque ele se nega a se acostumar com o fato de não me ter mais morando em casa em alguns anos. porque não se pode mais simplesmente sair de casa quando se briga com a namorada, porque agora ela é mulher e carrega seu sobrenome. ele não pode mais passar o dia fora andando de asa delta no morro da cegonha porque tem que voltar pra dar folga pra empregada e ajudar o filho na tarefa de matemática.
talvez meu pai não seja feliz por completo porque a vida passou pela janela e ele esqueceu de ir ver.
(férias em Búzios, já fazem 12 anos)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

“então eu te disse que me doíam essas esperas, esses chamados que não vinham e quando vinham sempre e nunca traziam nem a palavra e às vezes nem a pessoa exatas. e que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse. disseste de repente que precisavas ter os pés na terra, porque se começasses a voar como eu todas as coisas estariam perdidas.”

pedras de calcutá - "holocausto", c. f. abreu.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

será que isso é o que as pessoas costumam chamar de medo?
será que tá na hora da última cartada?






("the only one who can take away your pain is yourself")

terça-feira, 9 de setembro de 2008

então tá, vamos falar sobre isso agora

com o ballet, aprendi a encontrar meu eixo entre dois dedos do pé e o queixo levantado. aprendi a fazer mão delicada mesmo depois de quinze minutos de sustentação de uma perna aberta em 90 graus. aprendi a apertar a bunda e a barriga juntamente com os cotovelos arredondados e o joelho aberto. entendi o significado de fazer parecer fácil, de fazer parecer que se é uma pluma, de fazer parecer que os tendões não doem, que o pé não dói, que nada dói. aprendi a encarar uma platéia depois de cair no chão, sorrindo, e de como um piano soa. aprendi a girar olhando um ponto fixo, a atravessar a sala com um pulo e até a levantar do chão sem usar as mãos. entendi que delicadeza não é sinônimo de fraqueza ou de fragilidade, mas que toda bailarina sabe usar a força nos lugares certos e não fazer isso transparecer. não é uma coisa que se aprende fácil, talvez nem eu tenha aprendido ainda, mas é que o ballet se torna OVERRATED, quando na verdade é mal interpretado. muita gente experimenta a sensação libertadora de fazer duas semanas de aula e logo de cara acha que é a isso que a dança se resume: copiar direito ao da professora. nada de contrações. cãibras. sange. bolhas. suor. e acaba achando que o ballet não precisa de esforço nem de bolsas de água quente nem de gelol - e leva tempo pra se enteder essa essência. bailarina não tem o direito de dizer um ai, não tem o direito de dizer que não consegue, não tem o direito de deitar no soalho e pedir pra ir tomar água: é pior que escoteiro, só que sem os insetos! e a terra e os nós e os lobos e os cumprimentos, claro... e não posso dizer que entendo e que sei tudo - não posso criticar aquilo que não entendo. se você quiser chamar ballet de arte, terá que considerar todas as minhas dúvidas (que não são muitas, mas são suficientemente grandes pra me fazer pensar). afinal, arte pode ser tanto plágio quanto revolução... e todo mundo vê arte naquilo que cria, naquilo que se move, naquilo que diz o que o artista quer dizer sem necessariamente ter que ser por palavras. e, no final de tudo, com o ballet comecei a desacreditar na perfeição. irônico né? ela não existe, simplesmente. e lidamos com isso toda vez que olhamos para o espelho: ou pernas curtas demais, pés que não obedecem, as gordurinhas marcando no collant, a bunda de brasileira atrapalhando. não pertencemos à elite da dança que coloca os escrúpulos dentro das sapatilhas de 300 libras esterlinas e que passam tanta fome que o plié as faz desabar no chão. isso cruza a linha tênue que divide a dança clássica e o exagero - e que nos faz sofrer tanto para justamente não cruzá-la. é esse o desafio: o belo de uma quarta posição de braços pode facilmente se tornar no exagerado de uma contorção de dança flamenca. o gracioso de uma cabeça que vira para o lado contrário das pernas em tandue alternado para trás pode num piscar de olhos virar o exagerado de uma coreografia de auxiliar de mágico. e até a beleza assustadora de pernas com um metro de cinquenta de comprimento abertas a 195 graus torna-se o exagerado de uma contorcionista do cirque du soleil. é preciso saber medir. é preciso saber calcular distâncias. é preciso decorar nomes em francês. é preciso saber fazer contagens. é preciso o mínimo de noção espacial. é preciso fazer os acordes da música parecerem sair dos seus próprimo movimentos: sentindo aquilo atravessar o seu corpo como aqueles arrepios dos anjos que passam correndo. sentindo simplesmente - é isso que o dançarino faz. sente.

almost nobody dances sober, unless they happen to be insane. – h. p. lovecraft